Referências bíblicas: Lc 22.19-20; 1Co 10.16-17; 11.18-33
Este post é para você que já participa há algum tempo de uma igreja cristã, para reflexão sobre a Ceia do Senhor. Esqueça por um momento a tonelada de tradições humanas que você recebeu a respeito da Ceia, e volte-se exclusivamente para as Escrituras Sagradas, buscando extrair delas o significado espiritual e a realidade prática do que é esse momento tão importante na vida da igreja.
Primeiramente, tenha em conta que o Senhor instituiu a ceia durante uma festa da páscoa judaica, não por acaso, mas justamente para que, no verdadeiro Cordeiro, imolado antes da fundação do mundo, se concretizassem todos os tipos e simbologias de Cristo contidas na Páscoa, como podemos perceber lendo Gn 12. Aí vemos que a Páscoa teve sua origem quando Deus libertou Israel da escravidão e ao mesmo tempo castigou duramente os opressores do seu povo. A Páscoa era, portanto, uma FESTA solene para ser CELEBRADA, com alegria pela grande salvação e libertação (leia Gn 12.14) e não como o ritual sombrio e até mesmo fúnebre que se vê atualmente em muitas igrejas.
Em segundo lugar, era uma festa COMUNITÁRIA, feita em cada casa, em família, e não um exercício introspectivo de fé individualista (Gn 12.3-4). Em terceiro lugar, a ceia da Páscoa era um JANTAR, uma refeição completa. Além da carne do cordeiro servia-se pão, ervas e vinho para saciar toda a família. Era, de fato, uma CEIA, e não o “aperitivo” do Senhor.
Em quarto lugar, não havia um sacerdote para “ministrar” a ceia; havia apenas as instruções diretas do Senhor sobre como proceder. E em quinto lugar, o CORDEIRO era o centro da festa, e não o pecado do povo. Note que em Gn 3.8-11 (que abrange apenas 8 versículos) há 16 referências diretas ao cordeiro. O cordeiro puro e sem defeitos era observado durante quatro dias, e depois imolado em favor do povo. Foi o seu sangue que os livrou da morte e lhes preservou a vida. Foi a sua carne que lhes deu forças para atravessar o deserto, e eles deviam comê-la vestidos, com cajado na mão, prontos para a grande viagem rumo à terra prometida. Tudo isso eram apenas sombras do verdadeiro corpo que projeta a sombra: Jesus, o Cordeiro de Deus (Cl 2.16-17).
Ao instituir a Ceia do Senhor naquela ceia de Páscoa junto com seus discípulos, Jesus anunciava que o seu iminente sacrifício cumpriria a lei e nos libertaria da escravidão do pecado, porque Ele próprio era o Cordeiro da Nova Aliança, cujo sangue nos livra da morte e cuja carne é o pão da vida. Portanto, já não havia necessidade da igreja sacrificar um animal, pois o Cordeiro de Deus faria o sacrifício definitivo, de uma vez por todas. Mas agora, mais do que nunca, a importância e necessidade da Ceia ficava clara, pois Ele ordenou: FAZEI isto EM MEMÓRIA de MIM!
E é exatamente isso que vemos a igreja do NT fazendo: uma refeição da família de Cristo, que se reúne nas casas para celebrar o seu Senhor, em festa de amor ágape, comendo e bebendo juntos com alegria e singeleza de coração (At 2.46, Jd 1.12). A igreja do primeiro século dava extrema importância à Ceia do Senhor, por isso a fazia regularmente. Por exemplo, a igreja em Trôade fazia a ceia semanalmente, aos domingos (At 20.7). A razão dessa importância é porque a Ceia do Senhor nos traz um quadro vívido da pessoa maravilhosa do Senhor Jesus e sua gloriosa obra em nosso favor:
- O pão, alimento tão acessível e tão vital, nos traz à memória o Pão Vivo que desceu do céu e se tornou alimento acessível o todo o que é humilde como Ele.
- O pão partido, como o próprio Jesus ilustrou na última ceia com os discípulos, aponta para o seu sacrifício, sua carne partida no Calvário pelas nossas transgressões.
- O pão também nos lembra a ressurreição de Jesus, pois o grão de trigo, uma vez morto e enterrado, ressurge e dá muito fruto, suficiente para alimentar o mundo todo.
- O pão único que era repartido entre os irmãos também nos fala de unidade, de um só pão, um só corpo.
- O vinho também nos recorda o esmagamento das uvas, o sangue do Cordeiro moído por nossas transgressões, sangue que nos trouxe o perdão e libertação da escravidão do pecado.
- Esses alimentos básicos entram em nosso corpo e se integram a nós, penetram nossas células, nos trazem vida, tornam-se um conosco, assim como Jesus é nosso alimento, nossa vida e torna-se um conosco (leia Jo 6.53-58).
Podemos concluir dos trechos bíblicos mencionados no início que, seguindo o mandamento de Jesus, os primeiros cristãos celebravam a Ceia do Senhor do seguinte modo:
- começavam dando graças e partindo um pão, que era dividido entre os irmãos;
- comiam normalmente sua refeição, cuidando que todos participassem e estivessem bem alimentados;
- durante a refeição davam graças novamente e bebiam de um cálice de vinho.
E faziam isto com uma consciência pura, com fé, esperança e amor, centrados no Senhor Jesus:
- Fé que aponta para o passado e reafirma a realidade da obra da cruz, a qual aniquilou o poder do pecado e da morte sobre os santos.
- Amor que aponta para o presente e discerne o corpo do Senhor, isto é, os irmãos ali presentes, os quais juntos formam a igreja, o corpo de Cristo.
- Esperança que aponta para o futuro e anuncia nossa união eterna com o Noivo celestial, quando o próprio Cristo ressurreto nos servirá a ceia, na grande festa das bodas do Cordeiro.
A severa repreensão de Paulo à igreja de Corinto foi justamente quando alguns irmãos se afastaram desse padrão (1Co 11.21-22, 33), padrão esse que havia sido ensinado e ordenado pelo próprio Senhor à sua igreja. Porque comer egoisticamente e embriagar-se como numa orgia romana, sem esperar que chegassem os irmãos mais pobres (que tinham que trabalhar como escravos até mais tarde na casa dos seus senhores) era uma afronta e desprezo não apenas aos irmãos, mas também ao próprio Senhor Jesus. Paulo advertiu que isso já havia trazido castigo físico a irmãos de Corinto, que procediam de maneira tão desregrada (1Co 11.29-30).
Entretanto, a igreja contemporânea merece igual repreensão, porque também se afastou do padrão divino da Ceia do Senhor. Hoje vemos uma “Ceia do Senhor” que não é ceia, e que é feita num clima austero, de tristeza pelo sofrimento de Jesus, do qual muitos têm até medo de participar, medo esse muitas vezes incentivado pelos “sacerdotes” que se apropriaram desse ritual distorcido e muitas vezes morno, desprovido de sentido. A ceia de hoje é um ritual sacralizado na igreja católica e individualizado na igreja evangélica. Em ambos os casos, ao contrário de uma “evolução”, temos um desvio doutrinário.
Como chegamos a esse ponto? Segue-se um breve resumo histórico (baseado nos livros “Cristianismo Pagão” e “Reimaginando a Igreja”, de Frank Viola):
* Por volta do segundo século, o pão e o cálice começaram a ser separados da refeição, provavelmente porque esta atraía a muitos incrédulos famintos (um problema para uma igreja que já se estava institucionalizando) e muito provavelmente por causa da influência mística dos cultos pagãos, que requeria um ar solene, misterioso e místico para o culto, com o qual não condizia o clima familiar alegre descontraído de uma ceia ágape na sala de jantar da casa de algum irmão. No final do segundo século aquela separação já era completa.
* Já por volta do quarto século, a festa ágape foi proibida entre os cristãos! Com a banição da refeição, os termos “partir o pão” e “ceia do Senhor” foram também abolidos, sendo dado o nome de “eucaristia” ao agora truncado ritual, no qual só apareciam o pão e o vinho, chamados de “oferta” ou “sacrifício”, colocados sobre um altar e agora vistos como objetos sagrados, aos quais tinha acesso apenas um sacerdote que os ministrava ao povo. A ceia deixou então de ser um evento comunitário para deformar-se em um rito sacerdotal contemplado à distância. A alegria que antes caracterizava as festas ágape deu lugar a um ritualismo sombrio, cada vez mais envolto por superstições.
* Gradualmente foi sendo introduzida a idéia de que o pão e o vinho se transformavam literalmente no corpo e no sangue de Cristo, até que por volta do século XII a doutrina da transubstanciação foi oficializada na igreja católica, o que passou a gerar ainda maior temor em meio aos fiéis, já que por intermediação do sacerdote o pão se tornava Deus. Este conceito ficou tão enraizado que até mesmo alguns reformistas protestantes continuaram apegados a essa doutrina.
E apesar das igrejas protestantes e evangélicas terem rompido com a noção de que a ceia é um sacrifício literal, elas continuaram aceitando a prática da ceia ritualista católica:
- Um diminuto pedaço de pão (similar à hóstia católica) é servido, juntamente com um minúsculo cálice (de suco). A refeição ágape continua abolida.
- O clima é pesado e sombrio, como na igreja católica.
- Um pastor faz as vezes de um sacerdote, pois só ele “ministra” os elementos e só ele profere as palavras sagradas.
Eduardo Moura.